Crítica: The Last of Us 1ª temporada

Mais uma grande produção da HBO que sofre ao apressar sua conclusão

3/5
Oz
Data de publicação.
13/03/2023
8 min
Este conteúdo está sujeito à opinião do autor.
Opinião
Contém Spoiler

The Last of Us é uma série pós-apocalítica da HBO baseada no aclamado jogo de sobrevivência homônimo desenvolvido pela Naughty Dog e publicado pela Sony Computer Entertainment.

O jogo, lançado em 2013, se tornou um grande sucesso de público e crítica, alcançando mais de 200 prêmios de Jogo do Ano. Entre suas conquistas estão 5 BAFTA Awards, 4 DICE Awards, 1 Annie Awards, 6 BTVA Awards, 3 GANG Awards, 5 Game Critics Awards, 3 Game Developers Choice Awards, 14 NAVGTR Awards, 2 Play Legit’s Best Awards, 4 Spike Video Game Awards e 1 WGA Award.

Um grande sucesso.

Em 2020 o segundo capítulo da franquia foi lançado para ps4 e logo se tornou outro grande hit da Naughty Dog, encerrando a história de Joel e Ellie com um gosto agridoce e arrancando lágrimas dos jogadores que acompanharam sua jornada.

The Last of Us segue a história de Joel Miller (Pedro Pascal), um homem que perde sua filha no começo de uma pandemia causada pelo fungo Cordyceps, que transforma seres humanos em infectados semelhantes a zumbis. Anos após a morte de sua filha, Joel e sua parceira Tess (Anna Torv) aceitam a missão de transportar a adolescente Ellie Williams (Bella Ramsey) até um esconderijo dos Vagalumes em outra localidade nos Estados Unidos.

Antes de mais nada preciso fazer um disclaimer: essa crítica será inteiramente escrita sob a perspectiva de alguém que jogou The Last of Us – Part I. Ou seja, comparações serão inevitáveis, mas não significa que seus méritos próprios não serão abordados.

Dito isso, vamos ao que interessa.

A primeira temporada da série da HBO possui 9 episódios. Na esteira da liberação dos episódios, que aconteceu semanalmente todos os domingos após as 23h, vários críticos, sites e canais de entretenimento fizeram seus comentários episódio a episódio, levados pelo turbilhão criado com o hype da produção. Esse burburinho é justificado mediante a qualidade indiscutível da obra. Entretanto, pouco se falou sobre seus pontos fracos.

*spoiler alert*

O 1º episódio se inicia de forma impecável, com uma cold open exclusiva da série que oferece ao espectador uma prévia do que virá a seguir. O visual é incrivelmente fiel.

Conhecemos Joel, Sarah (Nico Parker) e Tommy (Gabriel Luna). Sarah vai a uma loja para consertar o relógio quebrado de Joel, para assim poder presenteá-lo em seu aniversário. Esse pequeno enxerto, exclusivo da série, oferece algumas pistas ao espectador no sentido de que algo está acontecendo na cidade. Outros detalhes como o estudante com tiques nos dedos também constroem o cenário da pandemia que está prestes a estourar.

Uma das melhores cenas do episódio acontece na casa dos vizinhos de Joel, quando Sarah está vasculhando uma estante a procura de um filme e a senhora que está ao fundo começa a se contorcer. Assustador.

Após a morte de Sarah, somos transportados para 20 anos no futuro, na cidade de Boston.

A parceira de Joel, Tess, é enganada por um picareta chamado Robert. Robert vendeu para outra pessoa uma bateria de carro paga por eles.

Sem comunicação com seu irmão Tommy a cerca de 3 semanas, Joel usaria a bateria para viajar até o Wyoming à sua procura.

Quando Joel e Tess vão atrás de Robert por causa da bateria, tudo acontece de forma apressada em comparação com o game, levantando, para mim, a primeira red flag. Tudo é condensado de tal maneira que na série eles já encontram Robert morto, e imediatamente conhecem Marlene (Merle Dandridge) e Ellie.

Esse sentimento de que faltou alguma coisa me acompanhou por quase todos os episódios e é, sem dúvida nenhuma, um dos principais problemas da produção. Toda a história é comprimida para caber em 9 episódios e o custo dessa decisão é muito alto.

Essa pressa em condensar a história me remeteu imediatamente ao triste fim de Game of Thrones, outra produção da HBO, que apresentou um final acelerado, insatisfatório e indigno da maior serie já produzida para a TV.

Essa compressão inexplicável comprometeu principalmente as cenas de furtividade nas quais Joel deve sobrepujar obstáculos, sejam eles humanos ou infectados. No game, esse é o componente chave do gameplay. Há quem possa argumentar que não é possível transportar todos os elementos do jogo para as telas. Esse não é o caso.

O fato é que essas cenas são extremamente importantes para construir o personagem de Joel. Um cara vivido, violento e casca-grossa. Ninguém precisa dizer que Joel é um tanque de guerra humano, o jogador vive essa verdade. Na série isso não existe. Tudo o que sabemos é o que é dito, nada é mostrado na tela.

Um pecado para qualquer roteirista. Show, don’t tell.

Fica a sensação de que o Joel da série é uma versão envelhecida do personagem, retirada diretamente do jogo The Last of Us – Part II. Quem não conhece o jogo vai ter uma percepção totalmente diferente do personagem.

É preciso construir para desconstruir.

Somos apresentados a Ellie, e aqui tenho sentimentos conflitantes. Bella Ramsey é um profissional brilhante, uma atriz realmente promissora que é o ponto central dos momentos mais marcantes da produção. Quando a situação exige emoção, ela entrega.

A segunda red flag contraditoriamente também diz respeito a Ramsey. No jogo, Ellie tem uma personalidade mais doce, inocente. Na série, porém, Ellie é mais combativa, teimosa e mal educada. Dona de uma personalidade forte, e muitas vezes chata, quando comparamos com sua versão original.

Isso me remeteu novamente a Game of Thrones, mais especificamente à personagem interpretada por Ramsey: Lyanna Mormont.

Neil Druckmann, criador, diretor e roteirista do jogo e produtor-executivo da série, comentou sobre as contribuições de Ramsey para sua personagem em um painel de divulgação da HBO na CCXP 2022:

“Do nada, a Bella se aproximou de mim no set e perguntou se podia falar comigo. Eu disse que sim e ela explicou que imaginava que Ellie agiria de certa forma [diferente do roteiro] em uma cena. E eu pensei: ‘Meu deus, ela tem razão. Ellie com certeza faria isso’. Eu achei inacreditável que conseguimos encontrar duas Ellies.”

Isso me fez concluir que essa personalidade belicosa é uma característica que Ramsey consciente ou inconscientemente transfere para suas personagens, independentemente de serem necessárias para suas construções.

Ellie é mais relacionável no jogo e isso oferece ao espectador uma percepção de choque amplificada quando sua inocência é perdida após o desenrolar dos eventos envolvendo o grupo de David. Sem mencionar que é essa personalidade doce que vai ganhando Joel pouco a pouco.

Um detalhe sutil que faz toda a diferença.

O 2º episódio começa com mais uma cold open incrível que mostra o início da infecção pelo Cordyceps na cidade de Jacarta, Indonésia. É nesse episódio que temos a raríssima aparição de dois infectados, mais especificamente estaladores, dentro de um museu. Tess acaba sendo mordida. Sua morte é memorável, muito mais impactante na série do que no game, mérito de Craig Mazin (Chernobyl, Uma Ladra Sem Limites), criador e roteirista da série.

Tess se explode enquanto se vê cercada e acaba recebendo, involuntariamente, um beijo repulsivo de um infectado. A boca do infectado está repleta de filamentos, conhecidos como hifas, que juntos formam uma estrutura chamada de micélio.

Desconfortável, o beijo é sem dúvida uma violação.

O 3º episódio chega para interromper essa narrativa de uma forma incomum. Contando uma história de amor no apocalipse zumbi. Definitivamente uma masterclass de direção, roteiro e atuação.

Nele conhecemos Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett), arco de história necessário para que Joel consiga obter sua tão desejada bateria de carro. No jogo, Joel e Ellie se encontram com Bill e no decorrer de sua aventura juntos em busca da bateria descobrimos que Frank estava morto. A série decide por uma abordagem mais humana, construindo esse relacionamento de forma gradual e graciosa.

Bill é um prepper desconfiado e, Frank, um indivíduo mais sensível, que entende que não basta sobreviver, é preciso viver para valer a pena.

Prepare-se para testemunhar um dos relacionamentos mais bonitos já vistos em uma produção hollywoodiana.

Apesar deste grande acerto, com o decorrer dos episódios, percebemos uma ausência. Um vácuo. Algo que deveria estar ali, mas não está.

Infectados.

The Last of Us é uma série de zumbis sem zumbis. Red flag número três.

O jogo balanceia perfeitamente a narrativa, as conexões humanas e as cenas de ação e furtividade com o retrato de um mundo pós-apocalíptico repleto de zumbis. Eles, os monstros, são obstáculos constantes no jogo, na série nem tanto.

À exceção de alguns parcos momentos, Joel e Ellie andam livremente pelos Estados Unidos sem que essa ameaça seja sentida.

O arco de história que envolve os irmãos Sam Burrell (Keivonn Woodard) e Henry Burrell (Lamar Johnson) é basicamente o mesmo dos jogos com um importante diferencial. Na série, Sam, o irmão mais novo, é portador de deficiência auditiva. Esse pequeno detalhe acentua a dramaticidade do episódio, servindo também como uma ferramenta narrativa.

Henry estava sendo procurado por Kathleen Coghlan (Melanie Lynskey) e por seu grupo de separatistas, sendo assim, a série decide gastar um considerável tempo de tela para explicar o motivo. O jogo oferece uma solução mais simples e eficiente. Nele os bandidos atacam e matam qualquer pessoa que passe por seu território com o pretexto, mais do que compreensível, de sobreviver. Seu único intuito é tomar bens e recursos para continuar existindo. Nesse caso, menos é mais.

Chegamos ao 7º episódio, de longe, o pior. Um filler do começo ao fim.

Baseado na DLC Left Behind, lançada em 2015 para ps3 e ps4, o episódio mostra o momento em que Ellie foi infectada e também a descoberta de sua sexualidade com Riley, sua melhor amiga. Um episódio absolutamente desnecessário uma vez que já fomos presenteados com a belíssima história de Bill e Frank.

O 8º episódio estava sendo aguardado com muita expectativa para que já conhecia a história de The Last of Us. Nele somos apresentados ao personagem David (Scott Shepherd) e seu grupo de canibais.

No game, esse arco recebe o tempo apropriado para maturar. Após se deparar com David, Ellie só baixa sua guarda após ambos cooperarem para sobreviver a um grupo de infectados. Na série tudo ocorre sem que uma conexão tenha sido estabelecida.

Apesar dos defeitos do episódio, Bella Ramsey entrega uma atuação primorosa, dona de um talento incontestável. A verdade transmitida pela atriz na cena final do episódio é, ao mesmo tempo, agoniante e comovente.

Já David, interpretado por Scott Shepherd, não me convenceu, tendo em sua contraparte, desenvolvida para os jogos, uma versão muito mais repulsiva.

O 9º e último episódio ocorre basicamente como no jogo, só que de forma mais apressada. O único diferencial é a cena do nascimento de Ellie, exclusiva da série. Nela vemos a mãe de Ellie, Anna Williams (Ashley Johnson), sendo mordida poucos segundos antes de Ellie nascer, o que explicaria sua resistência ao fungo Cordyceps.

Ashley Johnson e Troy Baker, que interpretou James, o capanga de David, são velhos conhecidos dos fãs da franquia. Ambos estiveram nos games, interpretando Ellie e Joel respectivamente.

Os méritos do show são muitos, e óbvios. Mas o que eu particularmente gostaria de destacar é a coragem de ousar. O material de origem já tinha a qualidade necessária para gerar uma série de grande sucesso. Apesar desse porto seguro, The Last of Us foi além, oferecendo a seus espectadores momentos marcantes que não foram retirados dos games.

Existe uma frase que diz: cada escolha, uma renúncia. Com um número limitado de episódios definido, quando se quer incluir, é preciso cortar. Quando os cortes passam a comprometer o cerne da história, é preciso reavaliar.

Um bom vinho geralmente é envelhecido em barris de carvalho, o que intensifica sua coloração e potencializa seu sabor, sinto que a história de Joel e Ellie se beneficiaria muito com mais tempo de tela, mais episódios ou mais uma temporada.

The Last of Us é mais uma excelente produção da HBO, mas, assim como Game of Thrones e seu final apressado, errou em não disponibilizar o tempo necessário para o desenvolvimento de sua belíssima história.

Vocabulário
Uma cold open, ou abertura fria, é uma técnica narrativa usada na televisão e no cinema que consiste em contar uma história com o intuito de prender a atenção do espectador antes mesmo que os títulos e créditos de abertura sejam exibidos.
Anúncio, alerta ou termo de isenção de responsabilidade.
DLC é a sigla em inglês para “downloadable content” ou “conteúdo baixável” no português. No universo dos jogos, o DLC se refere a um conteúdo extra de um jogo já lançado, podendo se tratar de uma expansão de novas áreas e missões ou apenas novos itens e novos personagens.
Filler é um termo é usado para se referir a episódios de uma série ou de um anime que não faz parte da história original e geralmente é usado para que a série seja prolongada ou para que não existam pausas na história.
Gameplay pode ser traduzido literalmente como “jogabilidade” e nada mais é do que um vídeo de uma pessoa jogando e compartilhando a experiência.
Hype é a promoção extrema de uma pessoa, ideia, produto, que geralmente dura por um pequeno espaço de tempo. É o assunto que está “dando o que falar” ou algo sobre o qual todos falam e comentam – o que está na moda. A palavra deriva de hipérbole, figura de linguagem que representa o exagero de algo ou uma estratégia para enfatizar alguma coisa. O fenômeno do hype (engajamento/motivação/excitação) está relacionado ao hiperconsumismo e de técnicas de manipulação midiática e sobrevalorização artificial de produtos ou ativos através dessas mesmas ténicas.
É um formato de evento ou curso que muito se assemelha a um webinar, mas que se difere pelos especialistas qualificados e com notoriedade responsáveis por transmitir seu conteúdo. Sendo assim, os inscritos podem contar com uma experiência completa aprendendo e absorvendo conhecimento de alguém que é realmente, um mestre no assunto.
Preppers ou sobrevivencialistas são indivíduos adeptos do sobrevivencialismo, movimento que foca na antecipação de possíveis catástrofes. Faz parte do sobrevivencialismo a estocagem de alimentos, recursos e armamentos, a construção de abrigos e o aprendizado de métodos de sobrevivência para situações extremas.
Alerta vermelho.
“Show, don´t tell”, em português significa “mostre, não fale”. Essa é uma técnica usada por escritores que permite ao público experimentar os acontecimentos da história através de ações, palavras, subtexto, pensamentos, sentidos e sentimentos em detrimento de exposições, diálogos ou narração. Isso significa assistir a um personagem fazendo algo e entender o que isso diz sobre ele e como ele se sente, ao invés de ter um personagem ou narração dizendo a mesma coisa.
Galeria de imagens
Notícias
Críticas
29/07/2024