Crítica: Na Mente de Sherlock Holmes

Cyril Lieron e Benoit Dahan dão vida a uma obra prima dos quadrinhos

5/5
Oz
Data de publicação.
01/04/2023
12 min
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Opinião
Contém Spoiler

Na Mente de Sherlock Holmes é uma história em quadrinhos dos criadores Cyril Lieron e Benoit Dahan publicada no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim com capa dura, formato grande 21 x 30 cm e 108 páginas coloridas impressas em papel offset de alta gramatura. A HQ é baseada no personagem Sherlock Holmes de Sir Arthur Conan Doyle e descreve um caso inédito chamado O Caso do Bilhete Escandaloso.

Originalmente publicada na França no ano de 2019 e 2021 em dois volumes, a obra já vendeu mais de 100 mil cópias e foi publicada em mais de 15 países, vencendo vários prêmios, dentre eles o Coup de Coeur do festival Quai des Bulles 2021 e o SNCF du Polar 2020.

Confira abaixo um vídeo divulgado à época da publicação de Dans La Tête de Sherlock Holmes, título original da HQ:

Antes de iniciar meus comentários sobre a obra preciso alertar que esta crítica poderá conter spoilers sobre a história, inclusive sobre situações e acontecimentos que só são descritos no desfecho da publicação. Então, se você ainda não leu Na Mente de Sherlock Holmes, leia e depois volte aqui. Acredite, você não vai se arrepender.

“Em uma típica manhã de sexta-feira, um agente da polícia bate à porta da casa localizada no 221B da Baker Street, trazendo um velho conhecido do doutor Watson em condições lamentáveis. O estranho relato do sujeito chama atenção de um entediado Sherlock Holmes, que rapidamente percebe estar diante de um mistério muito maior.

As pistas envolvendo um enigmático espetáculo de magia, bilhetes com ideogramas chineses, um pó totalmente desconhecido e desaparecimentos aparentemente aleatórios atiçam a curiosidade do detetive-consultor, que se anima com a possiblidade de um caso que o desafie.”

A sinopse da publicação oferece tudo o que precisamos saber sobre a história sem entregar muito sobre o desenrolar da investigação. Nesta análise irei seguir pelo mesmo caminho, sem descrever os acontecimentos em detalhes. Muitas vezes a jornada é tão ou mais importante que o destino.

Um elemento narrativo incrivelmente criativo utilizado pela dupla de artistas é o fato de acompanharmos a investigação através da linha de raciocínio de Holmes, que se torna um elemento visual recorrente na publicação.

Na Mente de Sherlock Holmes.

Interessante mencionar que muitas vezes a linha de raciocínio indica até mesmo o trajeto percorrido pelos personagens, marcando pontos em um mapa personalizado da cidade de Londres. Excelente sacada da dupla de criadores.

É curioso associar as etapas da investigação conduzida por Holmes com a percepção espacial dos locais relevantes espalhados pela cidade.

No âmago de Na Mente de Sherlock Holmes está o desenrolar de uma típica investigação criminal, tão familiar aos fãs do personagem ou mesmo de outras obras do mesmo gênero. O que diferencia, porém, a história contada na publicação das centenas, talvez milhares, de obras já produzidas sobre o personagem é o ponto de vista.

Em sua grande maioria, as histórias do detetive são desenvolvidas através do ponto de vista de seu amigo e biógrafo, Dr. John Watson. Nessa, o ponto de vista é a própria mente (ou sótão) de Holmes.

“Penso que o cérebro humano é originalmente como um pequeno sótão vazio. […] Ora, o trabalhador especializado toma muito cuidado com o que leva para o seu cérebro-sótão.”, diz Sherlock Holmes para Watson em Um Estudo em Vermelho de Sir Arthur Conan Doyle.

Na Mente de Sherlock Holmes.

Quem já acompanhou mais recentemente as séries Sherlock (2010-2017) ou Elementary (2012-2019) já estão familiarizados com a ideia, mas os quadrinhos de Cyril Lieron e Benoit Dahan transpuseram esse conceito para os quadrinhos de uma forma que nenhuma outra mídia jamais conseguiu realizar ou mesmo cogitar.

Com uma paleta de cores diferenciada, a mente/sótão é utilizada na narrativa como uma forma de mostrar ao leitor como o detetive separa e analisa as informações coletadas. É de fato um artificio narrativo incrivelmente inventivo que influencia tanto na forma como os textos e as informações são dispostas como na arte.

E isso se reflete logo de cara na capa da edição, que possui um corte formando uma silhueta vazada no formato da cabeça de Holmes mostrando uma arte maravilhosa do interior da mente/sótão do detetive na folha de guarda, ilustração essa que continua na guarda da publicação. Um primor de projeto gráfico.

Na Mente de Sherlock Holmes.

É interessante mencionar que o visual do personagem de Holmes foi inspirado no ator Peter Cushing (1913-1994), mais conhecido do grande público por seu papel como Grand Moff Tarkin em Star Wars. Apesar disso, Cushing foi utilizado como inspiração pela dupla de criadores por um papel muito mais antigo, o próprio Sherlock Holmes.

O Cão dos Baskervilles.

O Cão dos Baskervilles (The Hound of the Baskervilles, de 1959), foi um filme dirigido por Terence Fisher com Cushing no papel de Sherlock Holmes e André Morell (Bem-Hur) no papel de Dr. John Watson.

O Cão dos Baskervilles.

Produzido pela Hammer Films, o longa ficou marcado como a primeira versão colorida do personagem desenvolvida para o cinema e curiosamente teve a participação de Christopher Lee (O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, O Hobbit: Uma Jornada inesperada, Star Wars: A Guerra dos Clones), interpretando Sir Henry.

A arte de Lieron e Dahan tem um estilo próprio, que casa perfeitamente com a história narrada na HQ. Toda a estética do século XIX é transposta com esmero para a obra, incluindo vestimentas, construções, objetos, ornamentos, textos e design.

Todas as páginas tem um trabalho de design que emula papel envelhecido, um detalhe simples que infunde personalidade à publicação. Esses pequenos detalhes contam muito.

Outro diferencial são as brincadeiras interativas que os autores inseriram na arte, como dobrar uma página para montar um retrato falado de um suspeito, ou visualizar uma página contra a luz para que um determinado elemento seja destacado. Ler Na Mente de Sherlock Holmes é, na falta de um adjetivo melhor, divertido.

Outro ponto que merece destaque na arte de Na Mente de Sherlock Holmes são quadros e os requadros (bordas dos quadros). Aqui eles são utilizados muitas vezes para fortalecer uma ideia ou conceito mencionado no texto e existem vários exemplos disso no decorrer da publicação que faço questão de mencionar.

Quando estão a caminho do Teatro Lírico ou mesmo do Royal Albert Hall, os quadros tem o formato da arquitetura dos locais, repleta de arcos e colunas, o mesmo acontece quando Holmes recebe seu amigo mestre Hang Shen na 221 B Baker Street, com quadros que rementem àquelas janelas salientes conhecidas como Bay Window. Em sua passagem pelo Necrotério, pode-se visualizar dois quadros com o formato de crânio humano.

Com o soar do Big Bang, somos apresentados a quadros que lembram as marcações de um relógio e, no final da primeira parte da história, o requadro cria a silhueta de uma construção oriental, uma alusão ao local onde tudo começou.

São muitos os elementos retratados na forma de quadro ou requadro com o intuito de fortalecer uma mensagem transmitida no texto: troféu, ampulheta, tenda de circo, poste de luz, balança, fole, cantil, coroa, injeção. Palmas para Lieron e Dahan que utilizaram cada recurso que a nona arte pode oferecer de forma a potencializar sua narrativa.

Spoilers pesados a partir deste ponto. Esteja avisado.

É importante lembrar, antes de mais nada, que o mundo nessa época era dominado pelo imperialismo, que era uma política de expansão e domínio territorial, cultural e econômico. A concepção de imperialismo só foi possível graças ao avanço tecnológico obtido a partir da Segunda Revolução Industrial (1850-1950).

Foram as tecnologias criadas durante a Segunda Revolução Industrial que permitiram que as grandes nações pudessem alcançar e influenciar outras regiões do globo, exercendo domínio através de controle político e econômico de forma direta ou indireta.

A motivação do grande vilão do caso possui raízes em um acontecimento histórico real: a Segunda Guerra do Ópio. Tanto a Primeira Guerra do Ópio (1839-1824) quanto a Segunda Guerra do Ópio (1856 e 1860) foram decorrência da posição dominante dos ingleses no comércio mundial, muitas vezes alcançada através da força bruta. A China foi um dos países que mais sofreu sobre essa influência.

Seu plano visava instigar o sentimento de vulnerabilidade do Império Britânico em suas colônias, e, principalmente, “reascender a chama da resistência chinesa, que por muito tempo havia sido sufocada pelo ópio”, com o intuito de expulsar os estrangeiros da China.

O Sublime Zoo Humano de Damas & Cavalheiros Britânicos seria o meio pelo qual esse objetivo seria alcançado.

Em um primeiro momento, devo admitir, que a ideia me pareceu esdruxula. Um plano rocambolesco de um vilão chinfrim.

Porém precisamos lembrar que o Sargento Clifford Blackwell, o grande vilão de O Caso do Bilhete Escandaloso, era apenas uma ferramenta usada por Qiang Zhen, seu financiador chinês. Segundo Blackwell, Zhen era herdeiro de uma grande fortuna, possuindo recursos colossais à sua disposição. O plano em si não sustentaria uma revolta armada contra o Império Britânico, mas a riqueza de Qiang Zhen sim. Tudo o que precisavam era de um estopim.

Temos um exemplo similar, em terras tupiniquins, de algo que começou de forma tímida e tomou proporções gigantescas.

Ora, sem entrar em maiores detalhes, o impeachment de Dilma Roussef foi consequência de protestos devido a um aumento de 20 centavos no transporte público de São Paulo. Os protestos geraram uma cadeia de eventos que posteriormente culminou na prisão arbitrária de Luiz Inácio Lula da Silva, impedindo-o de concorrer às eleições de 2019.

Ou seja, como a primeira etapa de um plano muito maior, a estratégia de Blackwell poderia sim funcionar.

Hoje vivemos em uma realidade diferente, mais tecnologia e inclusiva, que busca cada vez mais a igualdade apesar dos contratempos. Com base nisso, o conceito de zoológico humano soa um tanto exagerado aos nossos ouvidos, mas não soava exagerado aos ouvidos dos ingleses do século XIX.

Os zoológicos humanos realmente existiram.

Essa HQ trouxe à tona em minhas memórias uma matéria que li na BBC há algum tempo atrás e que tem tudo a ver com os planos do Sargento Clifford Blackwell. Esse é o poder das histórias em quadrinhos elevado a enésima potência! O poder de fazer com que o leitor faça conexões com outros fatos, conhecimentos e experiências, o que invariavelmente acaba ampliando o escopo da própria história que se propõe a contar.

A matéria fala de uma mulher sul-africana chamada Sarah Baartman, que havia sido levada para a Grã-Bretanha em 1810 para ser exibida em feiras e espetáculos europeus.

Foto: SPL.

Leia: Sarah Baartman: a chocante história da africana que virou atração de circo – BBC Brasil

Baartman, uma mulher da etnia khoikhoi, possuía uma característica especifica atribuída a algumas mulheres dessa mesma etnia: a hipertrofia das nádegas ocasionada pelo acúmulo natural de gordura na região, fenômeno conhecido hoje como esteatopigia.

Foto: British Museum.

Baartman ficou conhecida como Saartjie e Venus Hotentote em suas exibições pela Europa e, mesmo após sua morte aos 26 anos de idade em 1815, continuou sendo explorada de uma forma macabra: seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais continuaram sendo exibidos em um museu de Paris até 1974.

Esse é apenas um dos casos de shows étnicos com humanos exóticos que ocorreram na Europa. Uma exposição realizada no museu Quai Branly, em Paris, reuniu cerca de 600 registros destas apresentações, dentre eles fotos, filmes, pôsteres e objetos:

Leia: Exposição relembra shows étnicos com humanos ‘exóticos’ na Europa – BBC Brasil

Quando somos confrontados com esses fatos, a conclusão da história contada na HQ passa a carregar um aspecto angustiantemente realista.

Na Mente de Sherlock Holmes é um quadrinho com uma história envolvente, uma narrativa extremamente inventiva, ilustrações belíssimas e um projeto gráfico impecável.

Gostaria de parabenizar tanto os criadores Cyril Lieron e Benoit Dahan por sua obra magnífica, quando a editora Pipoca & Nanquim, pelo excelente trabalho editorial e principalmente pela curadoria. Se o mercado editorial fosse uma partida de futebol, essa publicação seria com certeza um gol de placa.

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25/06/2023