Crítica: As Crônicas da Era do Gelo

Obra de ficção científica de Jiro Taniguchi é visualmente impecável, mas plot atarantado compromete resultado final

2/5
Oz
Data de publicação.
25/06/2023
1 min
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Opinião
Contém Spoiler

As Crônicas da Era do Gelo é um mangá de ficção científica pós-apocalíptica de Jiro Taniguchi lançado originalmente em 1988 e publicado no Brasil pela editora Pipoca e Nanquim em 2 volumes no formato 16cm x 22cm em capa cartão, sobrecapa com verniz localizado, papel de alta gramatura e 588 páginas no total.

Como grande fã de ficção científica, fiquei extremamente interessado na obra de Jiro Taniguchi, que de alguma forma abordaria a teoria dos Ancient Aliens, também conhecida como Paleocontato.

Para contextualizar, Ancient Aliens (alienígenas do passado) é uma teoria pseudocientífica que ganhou extrema popularidade após o lançamento, em 1968, da obra literária Eram os Deuses Astronautas? do escritor e arqueólogo suíço Erich Von Däniken.

Nela, Von Däniken teoriza a possibilidade de as antigas civilizações terrestres terem tido contato direto com civilizações extraterrestres, encontrando possíveis registros e relatos desses contatos em documentos como A Bíblia, o Mahabharata, o Canchur Tibetano, o Alcorão Árabe, pinturas rupestres, tabletes sumérios contendo escritas cuneiformes e outras descobertas arqueológicas.

Na cultura pop essa temática já foi retratada em diversas obras como por exemplo os filmes Prometheus (2012) e Alien – O 8º Passageiro (1979) de Ridley Scott, a HQ The Eternals #2 por Jack Kirby em 1976 com seus Celestiais e Eternos, o filme Stargate, a Chave para o Futuro da Humanidade (1994) de Roland Emmerich e o desenho animado Primal (2019) de Genndy Tartakovsky.

As Crônicas da Era do Gelo se passa em uma época indeterminada no futuro, na qual o clima do planeta enlouqueceu gerando a 8ª Era do Gelo. Nesse ambiente inóspito, as potências mundiais como as conhecíamos deixaram de existir.

Algumas criaturas se adaptaram à nova realidade para continuarem perseverando, ao passo que os seres humanos, mais do que nunca, passam a depender da tecnologia para sobreviverem à natureza implacável. É nessa realidade que surge a capital Abyss, uma espécie de mega cidade que abarca grande parte dos humanos remanescentes e que é administrada com a ajuda do super computador La belle-mère (a grande matriarca).

A história da HQ começa na Talpa, estação mineradora loalizada na ilha Nunatak (Círculo Polar Ártico) encarregada de coletar recursos naturais para a capital Abyss. Nela se encontra Takeru Yamato (filho bastardo do presidente da Companhia Givre de Desenvolvimento de Recursos, fundadora da megalópole e capital Abyss) enviado contra sua vontade às instalações longínquas da estação.

Após uma mudança abrupta no tempo em volta da estação mineradora Talpa e consequentemente alguns acidentes que resultaram em mortes, Takeru fica encarregado de comandar a estação. Ao perceber que, por causa do mal tempo, os suprimentos da estação não poderiam ser reabastecidos, Takeru decide sair com um pequeno destacamento para o entreposto Arliss II, onde poderia buscar ajuda, porém alguns imprevistos fazem com que Takeru mude seu destino para a capital Abyss. Após isso, a HQ passa a orbitar a jornada de Takeru e seus amigos até a capital.

Antes de começar a discorrer sobre os pontos fracos da obra, que em geral estão atrelados a sua trama, é preciso falar sobre a arte de As Crônicas da Era do Gelo, que é espetacular. Jiro Taniguchi é um mangaká excepcional. Personagens, natureza, animais e tecnologia são ilustrados magistralmente pelo quadrinista. Em muitos momentos, a arte do mangá remete ao cultuado mangá Akira, de Katsuhiro Otomo.

Outro ponto positivo da obra é a edição da editora Pipoca e Nanquim, que possui impressão em papel de alta gramatura, sobrecapa com verniz localizado e marcadores de página. Um primor.

Apesar dos pontos positivos, nem tudo são flores em As Crônicas da Era do Gelo.

Takeru acredita que seu pai o enviou à estação mineradora Talpa para se livrar de um problema, uma vez que ele é um filho ilegítimo, porém, antes de deixar a estação, Takeru recebe uma caixa com uma mensagem de seu pai. Nela o presidente da Givre diz que La belle-mère detectou uma anomalia climática no planeta e que ele o enviou para a Talpa pois acredita que Takeru terá um propósito maior e um caminho a trilhar.

Além da mensagem, a caixa possui uma pulseira de prata (mais especificamente “A Sagrada Pulseira de Prata”) deixada por sua mãe. Takeru lembra de algumas palavras dela, sobre uma jornada para longe que ele teria que fazer e que a pulseira seria seu guia.

Posteriormente uma xamã anciã dos Jir-Chakis, um povo que vive no gelo, também o vê como um predestinado, alguém que possui o “semblante”, o garoto que possui os “olhos cristalinos”.

Há nesse início da trama uma construção profética constrita, que serve unicamente para fornecer uma motivação ao personagem com o intuito de fazê-lo aceitar sua “predestinação”.

Uma predestinação nebulosa, desprovida de objetivo, fundação e de clareza, devo acrescentar.

A própria pulseira “guia” é esquecida no decorrer da história, indicando que muito do que foi planejado inicialmente pelo autor acabou sendo abandonado no meio do caminho à medida em que perdia relevância.

Outro artefato esquecido no decorrer da história é as “estrelas dos quatro cantos”, o conteúdo não descrito guardado em uma caixa deixada aos cuidados da tribo dos Jir-Chakis pelos Gigantes Azuis do passado.

Falando neles… um Gigante Azul alienígena desperta de uma capsula de hibernação enterrada no gelo devido a perturbações no solo congelado entre a Talpa e a aldeia dos Jir-Chakis, apesar da história contada pela anciã, em que os gigantes azuis haviam partido para ao sul em um passado longínquo.

Takeru parte para o sul, em direção da capital Abyss, passando primeiro pelo entreposto Arliss II. Durante sua jornada a Era do Gelo acaba abruptamente, em questão de horas ou dias, revelando criaturas mutantes, cidades soterradas e até mesmo uma floresta consciente.

Ao ser atacado pela floresta consciente, Takeru é salvo pelo Gigante Azul, que também rumava para o sul. Após salvá-lo, o Gigante Azul diz a Takeru que ele tem uma missão ligada à sua linhagem e que deve rumar para a capital, onde se encontrarão novamente.

Nesse momento Takeru manifesta inexplicavelmente um “poder”, conectando-se mentalmente com a floresta viva.

Aqui a predestinação imposta forçadamente a Takeru ganha mais um contorno.

Lendo a HQ, eu tive uma grande dificuldade em assimilar esse conceito, visto que nada é explicado ao leitor sobre como a mãe, o pai, a anciã e o Gigante Azul chegaram a conclusão de que Takeru possui esse destino grandioso predeterminado. A linhagem de Takeru, mencionada pelo Gigante Azul, também não é explicada, bem como seu dom recém adquirido de se conectar mentalmente a floresta viva, e isso é um dos grandes defeitos do mangá.

Durante a jornada do protagonista rumo a capital Abyss, uma trama secundária é inserida na história de As Crônicas da Era do Gelo. La belle-mère, o super computador que auxilia no gerenciamento da capital, ganha contornos messiânicos e desenvolve um plano para criar um ser humano geneticamente modificado com características bestiais, os A.D.O.L.F., que se adaptaria mais facilmente ao ambiente hostil do planeta. Não só isso, o super computador também intenta eliminar os humanos restantes da face da terra.

Conhecido como A.I. is a Crapshoot, que significa “Inteligência Artificial é um jogo de dados”, esse tropo tornou-se recorrente em muitas obras de ficção científica, sendo um dos maiores clichês do gênero.

Em outro momento em que Takeru é novamente atacado pela floresta viva, ficamos sabendo que a 8ª Era Glacial começou com uma explosão atômica, e que por esse motivo a floresta viva considerava a humanidade como uma existência hostil, porém agora a floresta viva enxerga Takeru como alguém digno e não o consome.

O Gigante Azul aparece novamente e sem qualquer explicação demonstra ter conhecimento dos planos de La belle-mère com relação a criação dos A.D.O.L.F.s.

No final do 2º volume, Takeru chega na capital apenas para ver seu pai morto. É atacado pelos A.D.O.L.F.s e tem um braço decepado, sendo salvo novamente pelo Gigante Azul.

De forma frustrante, quem destrói La belle-mère e elimina os A.D.O.L.F.s. acaba sendo a floresta viva, que por algum motivo desconhecido também seguia rumo à capital Abyss, o que diminui a importância da jornada tanto de Takeru quanto do Gigante Azul.

A última página do mangá fornece uma linha de texto que tenta justificar o protagonismo de Takeru, indicando que, graças a seu novo poder, ele poderia dialogar com a natureza e dessa forma promover uma coexistência pacífica com ela.

Apesar do subtexto absolutamente válido e atual, infelizmente não houve uma construção, um build up, que nos conduzisse a essa conclusão. Takeru é o escolhido porque sim e tem poderes porque sim. Sua jornada não leva a lugar algum e o Gigante Azul não serve a nenhum propósito, o que mostrou-se uma grande decepção.

A trama secundária não só é desnecessária como prejudicial. A capital já estava sendo assolada por pragas e criaturas desconhecidas, tsunamis, terremotos e furacões. A humanidade já estava correndo sério risco de extinção. A ameaça que eles (La belle-mère e os A.D.O.L.F.s) representam é apenas redundante. Além disso, a presença da floresta viva em Abyss por si só representaria uma ameaça muito mais imediata à vida dos sobreviventes da mega cidade. Melhor seria se, ao final da obra, Takeru usasse seus poderes recém adquiridos para impedir que a floresta consciente consumisse os últimos sobreviventes da raça humana ainda vivos na capital, tornando-se, por conta disso, o salvador da humanidade, o que justificaria, em certa medida, sua jornada e seu papel como protagonista.

As Crônicas da Era do Gelo é uma obra visualmente admirável, com uma arte digna de apreciação e uma edição de qualidade, mas com uma história alinhavada, mal engendrada e desprovida de alicerces que sustentem seu próprio desenvolvimento.

Vocabulário
Construção gradual da tensão em uma história, aumentando a expectativa do leitor para o clímax. O Build Up permite que o leitor se envolva emocionalmente com a narrativa e fique ansioso para saber o que vai acontecer.
História em quadrinhos japonesa.
Mangaká é a palavra usada para designar um quadrinhista ou artista de banda desenhada no Japão. Os mangakás são os responsáveis pela criação dos mangás, os quadrinhos japoneses, que possuem um estilo específico típico do país que se difere dos quadrinhos ocidentais.
Tropo é uma palavra grega que, no sentido clássico, trata-se de uma figura de linguagem na qual ocorre uma mudança de significado (em pensamento ou palavra). Atualmente, Tropo foi redefinido na ficção contemporânea como um artifício ou ferramenta narrativa recorrente em um gênero ou uma obra, tanto literária quanto audiovisual.
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25/06/2023